Pas-de-Deux

Can you get it inside your head that from this one step forward there’s no turning back?
Can you get it inside your head I’m tired of dancing?
We’re finished dancing.

— Fish, A Gentleman’s Excuse Me

Wings Pas-deDeuxNunca fui de dançar. Experiência só tenho dos bailinhos de classe do primário, nem se fala mais em primário. Bee Gees, Jackson 5, Julio Iglesias, Manolo Otero. Não que gostássemos, éramos crianças, pegávamos os discos dos pais. Era o que tínhamos à disposição então. Nossos pais eram dos anos 70, da época da discoteca e daquelas músicas que eles se acostumaram a chamar de bolero. Uma vez um colega apareceu com disco dos Ramones, a professora censurou, trocou por Tim Maia.
Tantos dias iguais de aula! Esses bailinhos são lembranças que curiosamente marcaram, não pelo especial, mas pela farra que nos permitiam. As lembranças da dança improvisada são lembranças das meninas que estudavam comigo. Como se cada uma pudesse ser descrita pela impressão que causava ali. Óbvio que, convivência, diária, era ao contrário. A impressão que tínhamos delas durante a dança era contaminada pelo que já sabíamos.

Sempre me lembro primeiro da chata. Era uma garota bonita, mas ignorante e mal-criada. Convencida e metida demais. Pisava nos pés dos meninos reclamando que eles não sabiam dançar. Cutucava, fazia cara feia. Como era bonita, sempre um se aventurava para, no final, passar raiva. Volta e meia, alguém a largava ou era largado na metade da música. Não era só dos bailinhos que reclamávamos dela. Todos a referiam por substantivos ruminantes. Não era difícil associar o animal à pessoa. Era assim em tudo, o ano todo. Se mudou de escola, de uma hora para outra. Quando veio se despedir, foi ignorada por todos, quase fantasma. Ganhou um “ciao” constrangedor. Dois meses depois encontrei-a na cidade. Grávida. Nessa época tínhamos uns treze anos. Quando percebeu-me, via-se que morria de vergonha. Não deveria ser nada de mais, já vi crianças grávidas antes, mas a vergonha dela, tão metida, foi-me de um delicioso sabor cruel.

Havia outra chata. Não tanto quanto a primeira, mas lembro-me da desfeita. A professora obrigava todos a dançarem com ela, ao menos uma vez cada um. Ela achava que discriminávamos a menina por ela ser negra. Não, não era o caso. Metade da periferia é negra. Essa menina era discriminada porque era chata mesmo. Tão chata que se achava no direito de recusar os convites dos meninos negros, que mesmo assim eram obrigados a convidá-la.

Tanto não era preconceito que havia outra menina, muito amiga de todos nós, negra também, super magricela. Esse não era o padrão de beleza da época. Mas ela era muito legal. Amiga, companhia agradável. A disputávamos. Às vezes com discussão. Era uma das preferidas. Podíamos dançar com ela, aquele arrasta-pé que chamávamos de dançar, e, ao mesmo tempo, conversar, rir, era diversão. Eu a revi já tínhamos uns dezoito anos, linda de morrer e legal como sempre. Fiquei tentado. Ah! se eu não namorasse ou não fosse menino direito! Mais alguns anos depois, nos encontramos de novo, já adultos, perto dos trinta. Estava já surrada da vida. Cedo perdeu a beleza de adolescente e o espírito de criança. Não se a reconhecia mais. Cansada, desiludida, entregue. Não merecia.

Tinha também a gata da classe. Menina linda. Aos onze anos já tinha rosto e corpo de quinze. Todos babavam. Ela fugia das festas de nossa classe e ia para as dos mais velhos. Ficávamos indignados, com raiva dela e deles. Mas ela também era muito legal. Logo passava a raiva. No dia seguinte já brincávamos juntos de novo. Parou de estudar, não lembro porquê. Encontrei-a, tínhamos uns vinte anos, num bairro desses tipo condomínio aberto. Ela esperava alguém no ponto de ônibus. Um ponto antes do final, não fazia sentido esperar ônibus ali. Ainda linda. Cara de sono. Roupas curtas, maquiagem carregada. Achei que denunciavam como ela ganhava a vida. Fiquei triste e ela, quando percebeu que me toquei, ficou também, claramente. Chamou-me para sair, passear, beber algo e conversar. Nunca foi normal uma mulher bonita, assim, e assim, do nada, me convidar para algo. Perdi o rebolado. Dei uma desculpa esfarrapada e peguei meu caminho. Arrependi-me, depois, gostava de conversar com ela.

Aquilo que fazíamos na escola, pequenos, não era propriamente dançar. Crianças de nove, dez anos, imitando o que viam na televisão. Imitando valsa ao som de bolero e funk  (funk de verdade, não pancadão, por favor). Era dar passinhos de dez centímetro abraçados. Um passo pra cada lado. Dançar, me contaram depois, era outra coisa.

Minha adolescência, fim dos anos oitenta, começo dos noventa, foi no tempo das danceterias. Eram lugares para patys e boys (acho que foi nessa época que esses expressões apareceram) que iam “nos panos” para salões de festa no centro da cidade. Os tais panos eram as roupas de marca que faziam a paty pensar que o boy tinha onde cair morto. Nunca tentei ser boy, nem ir às dances. Hoje suspeito que tenha priorizado errado minha vida. É só suspeita, não posso sentir falta do que não vi. As músicas da época, o pessoal chamava de dance, e eu odiava. Gostava de rock, como meu irmão, baterista de punk. Talvez eu tivesse me aventurado a dançar se gostasse da música da época. Ou da música da próxima época. Nos anos noventa, o dance deu lugar ao sertanejo, que eu também não gostei. As danceterias acabaram sem que eu as conhecesse.
Voltou, depois, algo parecido. Meus amigos chamam de balada. Não tenho mais paciência pra isso. Depois de velho não. Não me arrependo de não ter freqüentado mas reconhece que é uma experiência a menos, não posso opinar sobre isso.

34b2df566cdf31b386f32a6fb59356e5Ainda assim, gostava de tentar algo do tipo. Do tipo dançar. Sozinho, não quero passar vergonha. Ou melhor, em casal, se é para dançar, que seja direito, em casal. Mas sozinhos. Uma coisa é me expor para quem eu gosto. Outra é passar vergonha. Num quarto, ou sala reservada. Tem que ser alguém que me deixe à vontade, afinal, nunca fiz isso antes. É sempre estranho ouvir alguém falar assim sobre algo que, normalmente todos já fizeram. Soa a mentira. E certamente serei tomado por mentiroso, até começar. Como é que se começa? Mão? pé? Encosta o rosto? Pode olhar? Encosta? Quanto?
Não sei, tenho impressão de que logo me sentiria um caso perdido e aproveitaria para parar a dança. Usaria, então, a música como trilha para outra coisa…
Haveria de ter paciência para me ensinar.

 

3 comentários em “Pas-de-Deux”

Deixar mensagem para xelande Cancelar resposta