Ovo

Egg, isolated

Uma luminária. Antigamente havia umas luminárias de metal em forma de prato de cabeça pra baixo, que ficavam pendurados do teto pelo fio da eletricidade, Eu precisava de uma dessas, uns quatro metros de fio, tomada, uma lâmpada… que potência de lâmpada? A gente só usava quarenta ou sessenta watts em casa. Acho que quarenta serve, vai que sessenta ponha fogo na caixa. Ah! Caixa, preciso de uma caixa, um caixote de madeira boa, de uva.

Isso era o que eu precisava comprar. O mais importante já tinha ali: um ovos. Ovo de galinha mesmo.

Um pouco antes de meu pai se aposentar, mas quando ainda éramos só três irmãos, ganhamos do granjeiro um galo e duas galinhas para começar criação. Ele disse para pergarmos, nós crianças, um para cada um.

Meu pai queria mesmo começar criação, mas como o granjeiro deu os bichos para nós crianças. Ele acabou comprando outras crias e deixou aqueles três num galinheiro separado para nós. Aqueles não eram para abate, eram nossos para criar. Pets diriam hoje. Mas pra nós não eram só bichos de estimação.

Chamavam-se Panchito, Chicória e Gertrudes. Pegamos os nomes de personagens de algum gibi que o Zezinho gostava. Comiam quirela e talos de verdura que recolhíamos do lixo da cozinho, andavam conosco pelo quintal, bicavam a cadela, as carpas e as roseiras da mãe. Eram bichinhos que davam margem a algumas brincadeiras que só criança mesmo entende. Cavocar o fundo do quintal procurando minhocas frescar para lhes ver comê-las era diversão garantida.

Não me lembro quanto tempo levou, eu devia ter uns seis ou sete anos, a Chicória foi a primeira a morrer. Logo a minha chicória. A enterramos junto ao muro que dava para a casa dos compadres. Ali meu pai tinha reservado pra essas coisas, ficava no lado do quintal oposto à horta, com as plantas de minha mãe no meio.

Fiquei chateado, não propriamente triste. Agora, já éramos quatro, além do nenê, eu era o único sem uma galinha de estimação. Subi a escada pra casa pra lavar a terra das mãos no banheiro. Frescura de criança, não quis usar a torneira do quintal, talvez quisesse mesmo era sujar a pia do banheiro.

Passando pela cozinha, vi a cesta dos ovos, o último ovo da Chicória estava ali. Quem se acostuma com ovo de mercado, acha que eles são branco. Quem cria sabe que não. Ovo é vermelho, cor de tijolo. Ovo de mercado é branco porque a galinha é criada com aquela ração sem cor. A galinha mesma acaba ficando com a carne mais branca, as penas todas brancas por causa disso. Galinha criada em casa, comendo milho, põe ovo vermelho, as penas podem ser brancas, mas não aquele branco perfeito alvejado. E se eu desse esse ovo para a Gertrudes chocar?

“Não adianta, ela não vai pegar”. O Zezinho entendia dessas coisas. Ele entendia de tudo, nem adiantava desafiar. Mas ele se lembrou de outra coisa: o vô chocava ovo de passarinho com lâmpada. A gente tinha que por o ovo numa caixa de madeira, acender uma lâmpada não muito forte numa luminária de metal apontada direto para o ovo e esperar. Com os passarinhos funcionava. Não sei porque, mas eu achava que galinha era mais fácil. O ovo é mais comum, vende em granja.

No quartinho de ferramentas do quintal tinha tudo. Meu irmão era bom de eletricidade, montou as coisas. Eu pude fazer o monte de serragem dentro da caixa, colocar o ovo nele e ligar a tomada. A caixa estava montada na garagem, no vão embaixo da escada.

Meu irmão se lembrou de algo e correu, voltou com o termômetro do aquário. Colocou junto ao ovo e testou a temperatura. Queríamos uma galinha, não ovo cozido.

“Está bom.”

A experiência ficou ali repousando. São três semana para um pinto nascer. Olhávamos duas vezes por dia se havia algum problema, não seríamos os responsáveis por algum incêndio doméstico. O pai ficaria danado.

O dia chegou em que meu pai foi cutucar meu irmão na cama de manhã cedo: “Vai olhar a caixa!” A cara dele não era simpática. Algo havia acontecido. Meu irmão se levantou e foi. Era o mais velho, tinha que ir na frente. Eu só fui quando, num lampejo no meio da modorra, desconfiei que a tal caixa fosse a minha, a caixa com o ovo da minha galinha.

Corri, meu irmão e meu pai tinham mesmo descido a escada pra garagem. Quando cheguei, eles estava com a caixa aberta, a lâmpada afastada, mas ainda ligada. “Está nascendo, meu irmão disse.” Tinha empolgação de cientista na voz. Ele era pouco mais velho do que eu, mas tinha dificuldade de se comportar como criança. Nascendo? Então a cara estranha do pai devia ser cara de sono mesmo. Ou, conhecendo meu pai, devia estar encabulado de nos acordar antes da hora.

Meu pai estava em pé, olhando por cima. Meu irmão, de cócora, afastou um pouco o corpo para me dar espaço. Ele era muito alto, tinha que se arcar na escada, meu pai nunca imaginou que teria um filho assim alto. Mesmo com o corpo afastado e de cócoras, conseguia ver quase da mesma altura que o pai. Eu olhei meio da beirada da caixa, não vendo nada diferente, cheguei o rosto quase dentro dela. Nada de diferente ainda. Como que eles sabiam que estava nascendo? Não perguntei, mas o pai é da roça, galinheiro, entende disso. Zezinho devia estar trucando pra fingir que entendia também.

Esperei, esperei. Até a mãe ficar impaciente e chamar pro café, gritando. imaginei que fosse como na televisão. O bicho se esticasse, arrebentasse o ovo e já saísse andando: “ei, cadê meu milho?” Ou me enfastiei ou fiquei com medo do grito da mãe, fui tomar café. Ela desceu com o café do meu irmão que ficou ali de guarda da caixa. A galinha era minha, mas a experiência era dele.

Quando desci de novo, ele subiu devolver a caneca, voltou com um toco de madeira, uma espécie de espeto, um palito de dente maior que o normal. “Já está rachado, a gente ajuda ele a abrir.” Fiquei chocado! Como assim? “Não”. Mas o pai já estava atrás de mim e deu razão: “Tem de ajudar a quebrar a casca pro bicho não se cansar.” Parecia uma operação arriscada. Estaria o meu pinto, ou melhor, o pinto póstumo da Gertrudes, em perigo e fazia-se necessária uma intervenção cirúrgica? Uma cesariana aviária?

Meu irmão cutucou o ovo com a mão firme. Eu não sei como ele conseguia. Fazia com cuidado e, mesmo assim, com força e firmeza. Ele sempre zombava de mim por eu não ter firmeza na mão. Mais velhos, eu lhe mostrava minha caligrafia bem feita e comparava com a dele miúda e tremida: “Quem diria!”

Ele mexendo no ovo e eu nervoso. Coração a mil. Tudo podia dar errado. Quase desmaiei quando a casca furou e pulou uma meleca pelo furinho. Meu pai explicou com seu sotaque de ilhéu:”Isso é do ovo!” Meu irmão com o palito puxou as beiradas do furo, deixou um pouco maior. “Faz você”. Fiz igual a ele, mais sem jeito. Quebrei uma lasca da casca. Meu irmão se deu por satisfeito com minha ajuda, olhou olhou, cutucou de outro lado, fez outro furo, saiu um bico. Ele conseguiu encontrar onde estava o bico.

O bichinho foi indo, foi indo, enfiou o bico pelo buraco, quebrou mais, pôs o olho fechado, depois o bico de novo, aos poucos quebrou a casca, demorou.

Quando saiu estava úmido, melecado: “Tem que por a luz de novo.”

Pusemos a luz e deixamos e ficamos olhando. Logo enfastiou-nos olhá-lo. Agora era um pinto nascido, amarelo como os outros. O deixamos na caixa esquentando e secando. À tarde, meu pai o levou para o galinheiro menor, o de grade fina, junto com os outros pintos, sem distinção.

 

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