Olhos nos Olhos

In your eyes, the light the heat
In your eyes, I am complete
In your eyes, I see the doorway to a thousand churches
In your eyes, the resolution of all the fruitless searches
   — Peter Gabriel, In Your Eyes

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Em primeiro lugar, eu reparei, ou melhor, todos repararam, que aquela garota, baixinha, morena, de rabo-de-cavalo, além de muito bonita, tinha um corpo maravilhoso. No seu jeito de moleca, estava de regata amarela e uma calça não muito justa justa que não sei como se chama. Essas roupas, via-se, não eram usadas para chamar a atenção, mas delineavam direitinho seu corpo e, no meio de todas as outras garotas do curso, era ela que todos cobiçavam. Cobiçavam, mas não arriscavam. Sabe aquela garota que parece tão certa que não vale a pena ir atrás pra se descobrir errado? Então… era assim. Principalmente para um sujeito que se sabe feio como eu, e que olha em torno e vê candidatos mais bem qualificados a se darem bem.

Ao menos sonhar é de graça. Eu, que já sou disperso por natureza e observador de beleza por gosto, tomei cuidado de escolher minha cadeira próximo a ela, atrás, para poder olhá-la sem esforço durante a aula toda. E olhei, ah! como olhei! olhei muito! Tentei ser discreto, mas tenho certeza de que não consegui.

Fim da aula. Ganhamos lição de casa. Poxa, lição de casa logo no primeiro dia de aula! E era aquela lição bem chinfrim que me dá ódio: decorar um monte de coisas inúteis. Eu ainda com a silhueta do pecado na retina. Aquele pecado que não era só mais forte do que eu, mas tenho certeza de que ali, era mais desejado por mim do que por qualquer outro. Aquele pecado que eu olhei quatro horas seguidas, a aula toda. E não podia relaxar indo para a cama com ele ainda fresquinho na memória. Tinha que decorar aquela porcaria de lição de casa. Entra lição, sai tesão.

Não lembro direito os detalhes de como estudei, e houve detalhes. É claro que houve! Sei que dei algumas voltas pelo jardim, lendo. Não dou a mínima. Decorei logo, perdi a memória importante, e empolgante, e entrei pra casa para tomar banho e dormir.

No dia seguinte, na aula seguinte, ou melhor, antes da aula, aquele espetáculo que me dá ódio. Alunos aglutinados, em vários grupos, tentando estudar na hora o que não estudaram antes. Alguns zumbis estudando sozinhos. Chego à conclusão que sou um anormal, devo ter sido o único que estudou antes. Não dá pra não ficar impressionado com o nervosismo desses preguiçosos, lendo alto, corrido, tremendo as mão pra segurar os papéis. Ou melhor, eu fico impressionado, porque parece que todos os outros estão tirando o atrasado acadêmico na última hora. Uma meia dúzia de alunos vaga estudando sozinhos. E esses são os mais nervosos. Ao repetirem a matéria, fazem cara como se estivessem implorando aos céus. Alguns têm cara de choro. Meu Deus, que será que lhes acontecerá assim mal se não forem bem?

E dentre esses implorantes estudantes, a gata. E hoje está calor, ela está de short, ainda mais… encantadora que ontem.

Ela passa estudando sua ladainha lamuriosa junto a um grupo de vagabundos, todos homens, que, a poucos segundos, pararam de estudar, resmungando. Esses, eu até me sinto inclinado a respeitar mais do que aos outros. Teriam se tocado do ridículo da situação?

Mas ela passou por eles, e estavam a poucos passos de mim, tirou os papéis da lição da frente do rosto e fez uma cara de desespero de quem está com dificuldade. E eles fizeram então o mais ridículo: olharam de rabo de olho seu corpo e ignoraram a oportunidade.

Ela falou algo, eu ouvi, algo do tipo: “eu não consigo.”

Olharam pra ela com cara de espanto, como se só agora percebessem que ela era gente. Gente de verdade, como eles. Tapados!

Eu, antes que um deles, de ora para outra, ficasse esperto, avancei, eram só uns cinco ou seis passos, fiquei entre elas e eles e ofereci ajuda: “Deixa te ajudar.” Estiquei a mão para que ela me desse os papéis. Eu digo ofereci, mas dou-me conta de que praticamente mandei. No alto dos meus tamancos de recém-auto-proclamado macho-alfa que tentava se afirmar, o “Deixa te ajudar” foi de uma firmeza que não combinou com minha cara de cansado e a feição simpática que tentei, e talvez tenha conseguido, ensaiar.

Creio que disso mesmo ela tenha gostado. Deve ter se deixado convencer de que eu resolveria seu problema. Me deu seus papéis. “Repete, deixa ver o que você já decorou.” Tentei não ser agressivo, fazer-me como um professor firme mas carinhoso. Ela começou a repetir. “Não dispersa, me olha nos olhos e repete.” Irônico, eu falar para não dispersar. Mas falei. Precisava disso. Era a desculpa para tentar que ela prestasse atenção em mim. Mas ele olhou e começou a repetir. Duas, três, quatro, cinco vezes, mais outras tantas tive que chamar-lhe a atenção para que me olhasse nos olhos. E ela olho, cada vez mais confortável, cada vez mais confiante em si. E quanto mais confiava em si, mais alegre ficava e mais confiava em mim. Algumas vezes lhe corrigi, não muitas, ela já havia decorado tudo, só se esquecia por nervosismo. Graças a Deus, estava nervosa e se esquecia. Graças a Deus!

Depois de umas três vezes que repetiu tudo, nossos olhos já eram intímos. E eu estava feliz, feliz por vê-la feliz. Queria beijá-la, e enquanto ela repetia, tive vontade de fazê-lo por várias vezes. Mas quando ela terminou de repetir a última vez, sua comemoração foi tão alegre, tão festiva que, quando veio me abraçar, tive medo que ela mesma tentasse me beijar. Ela suspirou, de alívio, os olhos marearam.

Virei em direção à porta da sala. O sinal já tinha dado. “Obrigada.” “Obrigada, obrigada!” O primeiro foi mais “Obrigada” foi mais cerimonioso, como se só se achasse que eu, por ter-me virado a olhar a porta a tivesse desprezado pela falta de um agradecimento e então ela tivesse se lembrado dele. Os outros dois, foram com um sorrisão de boca escancarada e as lágrimas que lhe mareavam os olhos já escorrendo. Abraçei-lhe o pescoço, era muito mais alto que ela, e dei-lhe um beijo na testa, meio que no cabelo. Olhei-a nos olhos de novo e, com minhas mãos, que deviam ter cheiro do pão com manteiga e do café-com-leite de meu lanche, ajudei secando seus olhos e bochechas. Fiquei preocupado. Olhei se não tinha lhe borrado a maquiagem. Não, não havia. Estava com a cara castigada, mas alinhada. “Vamos lá.”

Ela acabou nem precisando do que estudou. O professor chamou apenas alguns à matéria, eu fui um, ela nem precisava ter se preocupado tanto. Mas, graças a Deus se preocupou.

Depois da aula, eu lia algo num mural, ela vinha na minha direção, quando me viu, parou. Voltou alguns passos correndo. Ué! Que que aconteceu? Falou com outra menina e veio pelo corredor de novo. Quando chegou do meu lado, virou de pulo para mim, via-se que estava acanhada: “Posso te dar meu telefone? Toma o meu.” Foi ela quem disse. Trocamos nossos telefones. Um daqueles bobões viu e, discreto, sorriu malicioso pra mim. Ela não percecorreu, foi em direção a um grupo de garotas.

Eu me senti um interesseiro nojento, mas confesso que convivi bem com isso.

 

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