A História como Contada por J.P.Wentling


All in all you are a very dying race, placing trust upon a cruel world. 
You never had the things you thought you should have had,  and you’ll not get them now, 
And all the while in perfect time your tears are falling on the ground.
   — Genesis, Squonk, 1976

 

trick-squonk“Eu lhes conto, é verdade… é verdade… eu vi”

“Meu Deus, lá vem você com essa história de novo, Wentling! Pare de beber e veja a besteira que você fala.”

“Eu vi, é verdade!”

“Claro!”

“O quê que é verdade?”

“O quê? Eu te conto.”

“Não, não conta. E você, não lhe dê corda! É um pinguço que não sabe o que diz.”

“Não sou um pinguço. Eu nunca bebi antes de ver aquilo.”

“Claro!”

“Mas me conte.”

“Vou te contar, esses aí não acreditam, eu talvez também não acreditasse… Pare de rir. Cala a boca, aí… e encha meu copo de novo.”

“É por minha conta essa, pela história.”

“Uma bebida não paga essa história…”

“Sem beber, ele nem teria história…”

“Chega! Sabe, rapaz…”

Antigamente, há não muito tempo atrás. Há não muito mesmo, eu já era adulto casado, embora não ainda não tivesse nenhum filho. Esta região era nossa de verdade. Nossa, não desses comerciantes e moleques de cidade que vieram para cá, derrubar árvores, construir ruas, armazéns com máquinas. Nós plantávamos, tínhamos nossas criações, galinhas, algumas vacas, porcos. Cada família cuidava de sua vida, cada um em sua terra.

Olha as árvores, por aí, imagina como era aqui antes de abrirem tantas ruas, trilhas, pasto, antes de subirem essas casas todas. Eram só as árvores e os sítios.

Para conseguir gado novo para a criação, precisávamos ir ao mercado da cidade, dois dias de viagem. Carne pra comer mesmo, era muitas vezes mais fácil caçar.

Eu saia pra caçar, passava dois ou três dias no meio mato. As vezes com amigos, trazíamos pra casa um alce, um bufalo, um veado. Se eu ia sozinho, voltava no mesmo dia com dois ou três coelhos, sempre trazia junto uma raposa ou lontra com pele que pudesse vender para ganhar mais algum dinheiro.

Uma vez, saí sozinho pra caçar. Sozinho não dá para pegar um alce, é muita carne para uma família só, e é difícil de carregar. Mas dá pra se aventurar a pegar um veado. E eu encontrei um e passei algumas horas o cercando, com cuidado para chegar perto sem assustar. Esses bichos não são espertos, se se assustam com barulho, logo correm para o outro lado, e correm muito. Muito mesmo.

Quando cheguei perto o sificiente para atirar, estávamos na várzea do rio, não parecia haver para onde ele fugir. Peguei a arma com cuidado, carreguei, não demorei mais que alguns segundos, quando fui mirar, o bicho havia sumido, sumido mesmo, como se tivesse se enfiado numa toca, kkkkk uma toca para um veado. kkkkkkkkkk

“Mais, mais, sirva mais.”

Eu já estava cansado, enganado pelo veado, bichinho filho-da-puta, a volta da várzea é uma senhora subida e, lá não tinha algo assim pra beber, só água, mato, umas arvorezinhas bestas. Sentei-me num troco quebrado pra descansar e curar a raiva.

A menos que você goste de olhar mato e árvores, não há nada o que fazer ali, nem o que ver, nem o que ouvir. Num dia sem chuva, sem vento, nem a água faz barulho. Isso deixa o caçador louco. Perder a caça e se achar assim no meio do nada, sem uma porcaria de pássaro em que atirar, você se sente o grande perdedor: caça caçada e não caçador.

Mas, ali havia um barulho. Parecia um guincho, alguém gemendo de frio. Não poderia ser alguém, quem estaria lá além de mim. Também não poderia ser vento,  não havia vento, nem frio, nem nada. Já era meio da tarde, estava morno. Olhei e não achei ninguém, nem nada.

Procurei, nem tinha nada melhor pra fazer, procurei, procurei muito. Quando achava que chegava próximo ao gemido, ele ficava mais forte e sumia, aparecia de novo, então, noutro lado. Às vezes me parecia ouvir mais de um ao mesmo tempo. Outras vezes, a pausa era muito longa.

Contam-se muitas historias de fantasmas. Aquilo, se era fantasma, era de uma história que nunca ouvi contarem. Fiquei muito tempo procurando por algo. Só aquela água da várzea, alta, mais parecia um pântano, cobrindo os pés das árvores.

Fiquei cansado também de procurar, mas a curiosidade não passava. Fiquei parado, olhando como muito cuidado para um canto, parece que vi algo atrás de uma arvore. Parecia parte do lombo de um bicho. Prestei atenção, não havia nada, mas depois, alguns metros mais para o lado, mais alguma coisa parda, quase da cor das arvores e do mato, se mexeu. Seria uma planta? um rato? Algum bicho que eu pudesse comer ou vender a pele?

Cerquei essa outra arvore e, de novo, nada. Fosse o que fosse, o bicho era bom, sabia fugir, se esconder.

Se eu atirasse logo que o visse, era capaz de estragar e pele. Fiquei eu ali cercando com o olhar, tentando me aproximar cada vez como mais cuidado de onde percebia movimento, mas sempre quando chegava aonde ele devia estar… não achava nada, só a água da várzea. E dentro dela, também nada.

“Por que meu copo ainda está vazio?”

Era pra se ficar com raiva. Mas quem gosta de caçar não, a diversão é maior. Enquanto o bicho não sumir de vez, você quer continuar, e não tem tempo pra raiva. Nem vi o tempo passar. Quando começou a escurecer, vi um brilho no meio de um tufo de mato. Era um olho… era um olho refletindo o resto de luz da tarde. Conforme escureceu ele ficou realçado. O sol fraco batia na água, que brilhava muito, ela no olho, que também brilhava como, nas história, dizemos que brilham os diamante.

Meus olhos foram se acostumando a luz enfraquecida do entorno, deu pra ver…

“Foi a bebida!”

“Cala a boca, já disse que eu não bebia, enche logo meu copo.”

Ele estava atrás do tufo de um mato alto mas ralo. Dava pra ver só esse olho e partes do contorno do corpo. Por então, eu achei que fosse um roedor, talvez um rato, um ratão muito gordo. Dei a volta, ao largo, pelas costas dele. Consegui vê-lo. Não parecia bicho de que se aproveitasse a pele, a aparência dela era horrível, feia, nojenta, toda lambuzada, enlameada, tinha alguns pelos grandes e grossos mal distribuídos, estava cheia de insetos e bernes visíveis. Também não acho que alguém tentaria comer algo assim, talvez fosse um gambá já velho, doente. Não devia servir pra nada. Mas eu não conhecia aquilo, nunca havia visto nada parecido. Eu tinha que trazer pra que alguém me dissesse com certeza o que era.

Eu já sabia que ele era bom em fugir e se esconder. Não sabia como fazer para pegá-lo, fiquei olhando, pensando como e ele também parado, sem me notar. Não demorou e ele cobriu os olhos e o focinho com as mãos, e voltou a gemer, gemer alto. Era o som que eu tinha ouvido antes. Eu ainda não sabia como chegar perto. O gemido dele aumentava e ficou cada vez mais choroso. Parecia um choro mesmo, como se fosse uma velha azeda da vida chorando no velório do último parente vivo.

Dizem por aí que eu o enganei, que me fiz de amigo. É mentira! Eu sou caçador, eu não traio! Além disso, não há traição entre animais. É a vantagem deles por não falar. Preservam sua honra de palavras vazias como as das pessoas.

Na minha bolsa, eu tinha um saco grande, cabia um porco inteiro, levei as mãos às costas, fucei a bolsa com cuidado. O choro do bicho ia mais alto e já me incomodava muito, sem falar que ele fedia. Achei o saco. Abri a boca dele e olhei o chão. Um pouco pela direita era mais seco, daria uns quinze passos até chegar ao bicho. Com cuidado, ele não perceberia a tempo de fugir ou se esconder. Ele ainda estava com o focinho e os olhos entre as mãos chorando. Medi bem a distancia e como seriam os passos, calculei o momento, corri. O barulho de choro me ajudou, quando ele percebeu, eu já o estava cobrindo com o saco. Pondo-o boca do saco adentro, pelo lado. Ainda consegui vê-lo todo, por uns segundos. Era a coisa mais feia que já vi, nem dá para falar direito como era. Mas eu o vi bem, a água ali, empoçada, brilhava muito, iluminou-o bem, eu o vi muito bem.

Era do feitio de um roedor, mas não parecia bicho da terra, de carne, e também não parecia peixe ou outra coisa da água, nem sapo. Estava com a boca aberta, a língua, um trapo vermelho muito torto comprido cheio de insetos, pendurado pra fora da boca, pingando. Dentes podres, quebrados, enormes. Tinha pêlos por todos os lados, irregulares, como se o tivessem começado a depenar, depilar, como água quente mas não tivessem terminado o serviço. Os olhos também eram muito grandes como de um louco drogado pelos medicos. O nariz, grande, era indefinível com tanta gosma que o cobria.

Peguei o saco com o bicho dentro e amarrei a boca (do saco) para ele que não fugir. Tive medo que me mordesse, mas ele não se mexia, não vou dizer que era como um peso morto, porque ainda chorava. Eu ouvia o gemido e o sentia tremer. Era como se só isso houvesse de vida nele. como se o resto do corpo, corpo gelado que ele tinha, embora tremesse, fosse morte.

Cheirava mal. O cheiro era muito peculiar. Não sei dizer se mais próximo de latrina, de peixe podre ou de cadáver. O cheiro sim parecia a morte. E era intermitente, em momentos piorava. Seria mesmo um gambá? Um rato-gambá, algo assim, imaginei. Não parecia pesar muito, mas o saco molhou quando o peguei, e ficou mais pesado, o peso de um leitão grande talvez. O saco pingava.

Eu não sabia pra quê que servia aquela porcaria, mas foi tudo o que eu cacei e eu estava cansado, não tinha mais comida, a querosene do lampião só daria para mais esta noite e eu precisava encontrar logo alguém que conhecesse aquilo. Voltei pra casa. não queria dormir aquele noite no mato. Dali para casa, devia levar umas oito, dez horas. Eu chegaria de madrugada e dormiria com minha mulher junto ao fogo.

Prendi o saco à uma forquilha e a apoiei ao ombro, acendi o lampião, pus-me no caminho de volta. Não havia trilha, mas as árvores na subida do morro eram bem espaçadas. Eu já conhecia ali há muito tempo, fui criado aqui. De noite ou de dia, estas terras são sempre iguais para mim. Subi o morro, desci do outro lado, peguei o caminho pelo vale. Havia andado uma hora e meia no máximo, quando o peso do saco aliviou.

Parei de pronto, abri o saco, estava encharcado, gelado e… vazio.

Olhei em torno, estava sozinho numa clareira. Pelo caminho por onde vim da várzea, um havia só um rasto molhado, brilhava, brilhava muito, mais que a lua, o saco molhado também brilhava. não era água. eram suas lágrimas, ele se desmanchou nelas.

 

The Squonk is of a very retiring disposition and due to its ugliness, weeps constantly.
It is easy prey for hunters who simply follow a tear-stained trail.
When cornered it will dissolve itself into tears.

True or false?
— Genesis, Sleeve notes to Squonk, 1976

 

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