Eu fui criado morando junto de cemitérios.
Quando criança, morávamos num sobrado numa estrada de periferia. Do outro lado, o cemitério. Do terraço tínhamos visão panorâmica de tudo ali. Era, de longe, o maior terreno da cidade. De se perder de vista o final mesmo. Hoje está bonito, bem arborizado, florido. Naquela época era só um capão esburacado com os túmulos dos primeiros defuntos enterrados ali. Todos pobres que não tiveram dinheiro para pagar um cemitério particular. O muro é, na verdade, os ossários para onde são levados os restos dos túmulos desocupados. Cemitério de pobre é assim. A cada dois ou três anos, tem de pegar uma caixa de sapatos e ir à exumação do parente para ver se o corpo já está bastante comido para ser passado à caixa de sapatos e guardado numa gaveta do muro. Se não fôr, o coveiro despe o defunto, joga o corpo direto na terra, cobre-o só um pouco e já reaproveitam a cova para o próximo enterro.
Quando cresci, fui morar com minha avó, na cidade. Há dois quarteirões da casa dela, atrás da catedral, ao lado da minha escola, o Cemitério da Saudade. Toda cidade tem um cemitério chamado “da Saudade”, na rua “da Saudade”, junto à igreja matriz. É lá onde estão enterrados os primeiros defuntos, os mais antigos, dos primeiros moradores da cidade. É lá que as famílias mais antigas da cidades têm sua campas. São casinhas, dois metros abaixo da terra, um acima, você entra por uma porta e uma escada, prateleiras dos dois lados, os caixões são colocados nas prateleiras sem terra por cima. Conforme lotam, as famílias pagam para os coveiros sumirem com os caixões mais antigos, dos parentes já esquecidos, para dar lugar aos novos. Desses caixões, desses corpos, não sei o que é feito. Creio que sejam enterrados no chão também.
Me lembro, sempre que vinha visita de fora, o pessoal comentando o horror que era nossa proximidade com o cemitério. Para mim, sempre foi algo natural. Igreja, escola, hospital, cemitério. Tudo parte normal da vida, não há porque negá-lo.
É engraçado como as pessoas passam todos os dias pela calçada do cemitério, esperam o ônibus encostadas ao muro dos ossários, as crianças brincam de empinar pipas sobre os túmulos e, até mesmo, os adolescentes descobrem o sexo escondidos nos corredores entre as campas, sem pensar em porquê ter medo. No entanto, quem vem de outro bairro se apavora com a possibilidade de enxergar do quintal ou da janela da escola a copa de uma árvore que nasce no cemitério, ou apenas de saber que dali se ouve, duas ou três vezes por dia, a sirene do rabecão lento, chegando ao velório.
Por ali, para quem mora ali, a coisa é diferente. Não que todos achem tudo normal. Cada um tem seu limite. Há, por exemplo, o terreno baldio em torno do velório. Ninguém se atreve a construir ali por não querer dividir o muro com as constantes macumbas. Há também as duas ruas sem saída que ladeiam o cemitério. O bairro não é de gente rica, mas essas duas ruas, estreitas, sem asfalto, casas bem pobres, conseguem constrastar com as outras, de aposentados e operários. Essas duas ruas foram, na verdade, deixadas durante o loteamento, meio que abandonadas. As pessoas não queriam morar ali. Não queriam dividir os muros de seus quintais com os dos fundos do cemitério. Temor muito mais dos vivos que podiam lhes invadir os quintais à noite do que dos mortos, agora todos honestos. Essas ruas foram depois ocupadas por pessoal mais pobre que, ainda assim, preferiu não ter quintal e deixar uma espécie de passagem de servidão entre as frentes das casas e o muro do cemitério.
A gente passava ali no fim da tarde, comecinho da noite, e via as crianças brincando sem medo naquela rua-corredor sem saída. Logo pequenas aprendem que não o devem ter.
Eu, quando era adolescente, às vezes jogava bola no campo atrás da igreja. Na volta, contornava ao contrário o quarteirão para alongar a conversa com o amigo que morava na rua do velório. Quando ele entrava, eu continuava para casa, pela calçada do cemitério, que era mais iluminada do que a do posto de saúde. Passava na boca de uma dessas ruas sem saída e sempre olhava, de relance, medo de violar a privacidade de alguém, as crianças brincando.
Um dia, voltando assim, uma menininha dobra a esquina correndo, vindo da rua sem saída para a avenida, e tropeça. Estava enrolada num lençol branco. Assustaria quem procurasse por fantasma ali. Dois ou três adultos, para dentro da rua, encostados às paredes das casas, fumando e conversando, ignoraram totalmente seu tombo. Eu me abaixei para perguntar se ela se havia machucado. Com receio de ser mal entendido. As pessoas por aqui gostam de pensar que homem feio, quando fala com criança, tem más intenções. A menina se apoiou com as mãos chão e começou a se levantar, cara suja da poeira da calçada, sem me olhar. Só chacoalhou a cabeça que não, que não se machucou, como se estivesse encabulada de cair feito criança que era. Um dos pés pisava bem para dentro da borda do lençol. Foi nele que ela havia tropeçado. Antes que caísse de novo, segurei o lençol, firmei para que o pé não escorregasse e disse-lhe que o puxasse mais para cima, para não tropeçar de novo. Perguntei se não tinha se machucado mesmo. Ela agora disse que não. Perguntei se não ia voltar para casa para olhar direito e apontei com o rosto para a rua de onde ela vinha. Ela apontou com a mão por cima do cemitério, talvez em direção à outra rua sem saída: “Eu moro lá.” E saiu correndo de novo pela calçada.