Livro

Um amigo, já finado, deu-me. Sabia que eu gostava de ler. Também sabia que eu talvez nunca o lesse, pois, outra coisa que sabia, sou totalmente averso à sua religião. Era um daqueles livros religiosos, ou que se pretendem religiosos. Grosso, pesado, antigo, escrito em letra miúda num papel muito fino, muitas folhas de papel fino. Disse-me que lesse as páginas ao acaso, não precisava respeitar seqüência. “Vai ver, não é chato, é escrito de numa linguagem moderna, como se fala.” Foi o que bastou para que eu o largasse fechado num canto.

Ficou lá, não se mexeu sozinho. Nem foi mexido por ninguém. Não o escondi, ficou à mostra. Algumas vezes pensei que talvez alguém se engraçasse por ele e eu lho daria de presente. Ninguém pareceu se interessar.

Abri-o só muitos anos depois. Foi quando perdi meu pai. Jogado no pufe ao lado do telefone, após receber a notícia. Fiquei um tempo ali parado, pensando besteiras. Depois pensando em nada. Vi o livro. Era só esticar mais um pouco a mão para alcançá-lo. Sem intenção de nada, interesse em nada, abri-o, ao meio, numa página qualquer. Ele parecia escrito numa carreira sem parágrafos ou pontuação. Comecei a ler por uma palavra qualquer. Não sei se foi coincidência. Parece que abri numa parte destinada a essas situações mesmo. Embora rejeite aquela religião, as palavras escritas pareceram se encaixar bem no que me acontecia. Bem escritas, bem colocadas, me confortaram.

Eu estava ciente de que aquilo era apenas uma manipulação religiosa. Nada nesses livros é por acaso. Não sabia o que era. Mas não importa. Aquele livro me ajudou muito.

A segunda vez em que o abri, estava chateado com algo mais mundano. Um desses problemas de família que afetam os negócios que afetam a família também. Abri-o, não porque achasse que seria útil. Abri-o para provar que era uma besteira, que o primeiro incidente havia sido os coincidência. Queria rir. Abri, de novo a olho, e li. Coincidência de novo, também encontrei palavras e conselhos que se encaixaram perfeitamente naquela situação. Curioso, sorteei mais páginas e trechos pensando em questões mais corriqueiras, besteirinhas do dia-a-dia. Encontrei respostas e explicações para todas. Imagina como fiquei maravilhado!

De lá para cá, o livro tornou-se amigo para todos os problemas. Recorri a ele muitas vezes. É incrível! Parecia haver ali, em qualquer página que o abra, um ensinamento miraculoso que se encaixa em minha aflição, qualquer que seja ela.

Um dia pus-me a pensar nos problemas que tive. Foi um momento de auto-sinceridade desse a que nós permitimos de vez em quando. Pensei no mal e no bem que fiz. Situações antagônicas. Numas eu era herói, noutras bandido. Numas vítima, noutras premiado.

Pensei nos ensinamentos que tirei desse livro.

Só então me dei conta. Os seus ensinamentos não eram assim tão sábios. Não eram palavras de sapiência mágica universal. As verdades absolutas que pareciam. Eram tão antagônicos quanto as situações da vida. O conselho que recebi num problema, e que julguei me ajudar era completamente o inverso do outro, para outro problema, de dai uns dias. Os caminhos indicados variavam para cada questão, não para me levar a um destino seguro. Me levavam à justificativa de meus erros, fossem quais fossem, e ao desfrute dos prêmios, não importa quais ou de onde viessem, merecidos ou fraudulentos.

Esses conselhos se sobrepunham. Um desautorizava o outro. Substituíam-se conforme a conveniência. A minha conveniência. A de minha consciência. Inconstante, não importa a situação, em que página abrisse, ele me apresentava ali o que eu queria ouvir, não a verdade.

Não consegui mais confiar nele. Aquele livro não era mais um amigo. Era o próprio cão. Puxa-saco. Guiou-me para fora do caminho. Agora noto e me envergonho de quanta coisa má fiz apoiando-me nele.

É por isso que, resistindo à tentação de procurar nele uma explicação, jogo-o agora no fogo. Queimará como quero. Dirá-me, esta última vez, o que quero ouvir, o seu trepidar no fogo aquecerá minha noite fria.

4 comentários em “Livro”

Deixe um comentário