Risca

Happy hour com o chefe nem sempre é algo agradável, em geral não é. Eu não tenho esse problema. Meu chefe é meu amigo. O cara é estrangeiro, não conhece tanta gente por aqui. São Paulo é uma cidade complicada para fazer e manter amizades depois de uma certa idade. As distâncias são longas, a locomoção é difícil. A gente acaba fazendo amizade só com os colegas de trabalho. É complicado. Se você não para muito tempo na mesma empresa, como é o costume em nossa área, acaba tendo poucos amigos. Poucos mesmo.

Depois do trabalho, costumamos beber alguma coisa, ao menos duas vezes por semana. Além de alguns assuntos de trabalho mesmo, há assuntos sobre os quais não podemos conversar dentro da empresa, durante o dia, na frente de qualquer um, política corporativa, relacionamento com colegas, também conversamos muito sobre experiencias, a vida de imigrante, a de filho de imigrantes, as impressões que tinhamos de pessoas que conhecemos, situações, conselhos, reprimendas. É um jeito relaxado de desestressar e ainda conseguir uma opinião diferente vinda de uma pessoa próxima que, às vezes, observou a situação sobre a qual conversamos.

Numa das epocas em que trabalhamos juntos. Na primeira empresa em que trabalhamos juntos. Íamos às vezes a um lugar que chamávamos de Risca-a-Faca. Era um bar que destoava dos outros ao redor da empresa. Num bairro chique, com cafés, bares, casas noturnas e restaurantes que imitavam os de Nova Iorque e Paris, como se costuma dizer, o Risca – esse apelido não é carinhoso, é só um modo de economizar sílabas e facilitar a pronúncia – é diferente. É um daqueles botecos típicos de periferia, com mesas e cadeiras baratas de plástico, toalha descartáveis de papel, azulejos velhos, funcionários de uniformes comuns, aqueles comprados em lojas de varejo, guardanapo vagabundo, comida e cerveja populares. Ele explora um público que não chega a ser de pobre, mas é gente que não freqüenta lugares chiques, ou não só. Nós íamos a qualquer lugar, nos outros, naquele. O que importava era poder espairecer. Naquele noite, fomos lá.

Não me lembro qua era o dia da semana, devia ser uma terça ou quarta-feira, pois tinha pouca gente. Acho que só nós dois. Nos sentamos na frente, numa mesa bem em frente à entrada. E havia também um pessoal de uniforme branco em mesas juntadas, entre a nossa e a parede. Ali junto há um complexo hospitalar, faculdade de medicina, deviam ser de lá. Mulheres, umas oito ou dez, em torno dos vinte, vinte-e-pouquinhos anos. Não me lembro de mais alguém estar por ali.

Também não me lembro do que falávamos. Provavelmente, na nossa mesa, havia lingüiça e pão. Quem gosta de lingüiça é ele, vejam bem, eu gosto de pão. Adoro pão. Devia haver também cerveja – aquela bebida fermentada de milho que vendem por aqui falando que é  cerveja. Eu não gosto. Gosto de vinho e de cerveja de verdade, de malte, não de milho. Mas é o que vendem ali e eu estava ali pela conversa, não pela bebida.

Meu amigo, eu o chamo de jefe, é chefe em espanhol, tem minha altura e ele consegue se maior que eu. Maior que eu digo é mais gordo, muito mais, e espaçoso. Ele fala com os braços. Dizem que os italianos falam com as mãos. Ele não é italiano, ele não fala só com as mãos, mas com o braço todo. Ele abre os braços abraçando o mundo, aponta, se vira, chacoalha, olha, bate asas. Tudo isso com movimentos lentos de gordo alegre, é divertido. Dizem que todo gordo é alegre. Isso é mentira, mas quem disse pela primeira vez, talvez o conhecesse. Esses movimentos são de quem está descontraído e distraído, não pensa no acidente que pode causar. Às vezes prega um susto: esbarra na mesa, ou mesmo, sem querer, empurra, acerta alguém. Nunca machuca, dificil causar um acidente sério. Apesar de forte, eufemismo pra gordo, ele não usa força nesses gestos.

Os esbarrões, e eventuais bofetadas e trombadas, acabam tendo sua função social. Às vezes brinco com ele, digo que é espaçoso de propósito para esbarrar nos outros e começar uma conversa fiada pelo pedido desculpas. Ele nega. Eu acredito. Não é nada proposital. Mas, quando acontece e convém, ele aproveita.

Depois de ter passado raiva no trabalho durante o dia, e as coisas que aconteciam naquela empresa nos faziam mesmo passar raiva, mais duas cervejas e luz fraca do lugar, os reflexos ficam ruins. E o juizo também. Meu amigo, numa hora em que abriu os braços, quase deu um tapa com as costas da mão no rosto de uma das meninas da mesa ao lado. Se ela usasse peruca, ele a teria deixado careca. Foi engracado, mas embaraçoso até para os outros. Seus dedos se enrolaram no brinco de argola dela. Ficou muito sem graça, pediu muitas vezes desculpas. Ela, assustada, as outras rindo, aceitou as desculpas rápido, acho que para acabar logo o assunto e dispersar a atenção indesejada que tinha. Normalizada a situação, o brinco no lugar, a orelha saudável, íntegra, elas se voltaram à propria mesa, nós à nossa. O jefe se auto-penitenciava. Ainda a incomodou mais uma vez, sentia-se culpado pelo perigo e por tê-la visto envergonhada. As desculpas eram sinceras. e o embaraço dela também.

Depois disso, uma das outras meninas, uma gordinha bonita, de cabelo comprido liso e tiara, conversou algo com ela, apontando ele e dando risada. Deve ter feito a piada óbvia. A menina não gostou. A gordinha riu gostoso, um riso simpático. As outras em volta riram também, não tão gostoso, mas riram até mais alto que ela. A menina do brinco ficou envergonhada demais. Eu, descuidado, ri. A gordinha nos olhou séria. Acho que eu, curioso com a situação, olhei demais e ela se incomodou. Tinha o direito. Fui no banheiro. Precisava já, mas aproveitei para ir naquele momento para fugir do carão.

Saindo do banheiro, ainda sóbrio, dei de frente com a menina de branco, a do brinco, a vítima. Ela desviou de mim, sem me olhar, não sei se por vergonha ou bebida. Olhava fixo pra algum ponto na porta do banheiro feminino e foi pra lá. Eu fui pra mesa. Sentei-me. A mesa delas já não tinha tanta gente. Se, no começo, eram umas dez, agora sobraram quatro. As outras estavam na porta, esperando a que foi no banheiro. Quando ela passou, mais um pedido de desculpas. Foi engraçada a expressão dele, como se fosse sua última esperança de redenção. Ela não achou graça, encabulada. A maioria das amigas também não. Eu achei. A gordinha e outra das meninas sentadas também. A gordinha deu risada de eu não conseguir segurar minha risada. Os dois ficaram sem jeito. Ela foi embora junto com as outras que, impacientes, lhe apressavam da calçada.

Não sei se é a cerveja, a lingüiça, a cebola da lingüiça, gosto muito de cebola, ou o sono, mas a luz fraca, parece que enfraquece mais quando o tempo passa. Parece que, ao entrarmos, está bem branquinha e que, depois de entrarmos, ir amarelando e diminuindo com o tempo acessa, igual a uma vela que se consome. No Risca quase vazio, a conversa das meninas, ora barulhenta, ora cochichada, incomodava um pouco. A nossa também devia incomodá-las. Incomodava porque, com pouco barulho e volta, dá para distingüir várias palavras, parece que quando alguém chama é a nós que chama, as risadas chamam a atenção. A gordinha de tiara era quem mais falava. Parecia ser algum tipo de líder ou dominante do grupo. Ou era apenas quem tinha mais novidades para contar. Estava quase de frente pra mim e eu pra ela. Eu não queria reparar, nem nela, nem no que ela falava. Mas reflexo de quem bebe na luz fraca é ruim. De tempos em tempos, ela dizia algo e dava risada. Ria gostoso, como riu na hora do acidente com a amiga. Isso chama a atenção, aos menos os olhos. A gente olha, parece-me natural que olhe. Eu olho. Uma risada súbita, eu olhava, ela me olhava e logo parava de rir. Eu não queria incomodar.

Depois de mais um tempo de conversa… a conversa estava boa aquele dia. não falei sobre a conversa, mas estava boa demais, sempre é. A cerveja era ruim, o pão velho, mas a conversa boa. Fui no banheiro de novo. Cheguei de volta à mesa com meu amigo pedindo desculpas à gordinha pelo incidente com a outra menina. Ela sorria simpática, tentando parecer simpática. Ele, bêbado, não percebeu, mas ela estava incomodada. Pedir desculpas duas vezes pra pessoa certa chama a atenção, mas é compreensível. Pedir a terceira, por tabela, eu não sei, mas acho que incomoda. Ela procurou aparentar simpatia com ele, mas quando ele não estava olhando direto no rosto dela, ela me olhou, umas duas vezes de rabo de olho, séria, brava. Pensei que nós dois íamos ouvir alguma coisa. E não seria agradável.

Ele saiu para o banheiro também. Fiquei sozinho na mesa, com o copo cheio, gelado. Não devia estar cheio. Mania que ele tem de pedir para trocar meu copo por outro cheio. Como não gosto dessa cerveja, bebo devagar. Quando passa o garçom, ele se incomoda e pede para trocar meu copo, com cerveja fria pela metade, por outro cheio de cerveja gelada.  A rua já estava bastante escura. Ninguém passando. Ninguém na minha mesa para conversar. Eu devia estar com cara de mamão pois as meninas falavam de mim. Ou de nós dois. A gordinha falava com as outras me olhando de rabo-de-olho como se me apontasse pra elas. Aquela coisa que fazemos sem querer pra conferir se alguém percebe que virou assunto. Não sei se corei, mas fiquei sem jeito. Sempre fico, sem nem precisar que me apontem. Não gosto de chamar atenção e acho que ali não chamamos de uma forma muito positiva. Mais duas garotas foram embora. Ficaram a gordinha bonita, a da tiara, e uma outra que parecia desanimada. Talvez desanimada demais até para ir embora.

Meu amigo voltou. Na hora de sentar, espalhafatoso e desastrado como sempre, esbarrou a bunda na segunda menina, sem querer. Pediu desculpas, embaraçado. Achei que ia começar tudo de novo, mas a conversa puxada depois das desculpas me pareceu já ensaiada. Sentou-se. Torceu o corpo todo para falar com elas. Daquele jeito, ficaria com torcicolo. Perguntou se eram médicas. Eram enfermeiras, algumas. Enfermeiras de verdade disseram, não assistentes ou auxiliares. E alunas de enfermagem as outras. Ele perguntou os nomes. A gordinha fez uma cara de quem estava se divertindo em dar-lhe corda. Bebeu meio copo de cerveja e perguntou onde trabalhávamos. Ele se animou e respondeu. Se apresentou fazendo umas palhaçadas que, eu o conheço bem, ele faria mesmo que não tivesse bebido. Mas acho que ela assumiu que fossem coisa de bêbado, riu bastante. Joguei-me para trás na cadeira, aliviado, me divertindo também das palhaçadas, dessas e de outras que eu sabia que se seguiriam. Ele me apresentou também, com cerimônias, como se eu fosse seu filho. Ele é mais velho que eu mas não muito. Tive um irmão que, se fosse vivo, teria a mesma idade. Eu, me divertindo, cumprimentei com um aceno de cabeça e de copo: “Damas, muito prazer”. Ele me elogiou, por pouco tempo, mas bastante. Elogios sarcásticos, como costuma fazer comigo. Eu sempre rio. A gordinha riu sem acreditar no que ele era capaz de falar de mim.

A outra menina também se jogou para trás na cadeira. Estava oposta a mim. Ficou olhando a situação. A gordinha, com o decote lindo de encontro à mesa, dava corda e ria das bobagens do gringo, que até dançou um pouco para ilustrar, quando respondeu de onde era. Ele perguntou se ela tinha algum interesse em ser nossa cliente. Ele não é vendedor, estava para falar alguma besteira. Disse que, se ela tivesse, ele poderia ajudar com tudo. Ela nao tinha. Ninguém tem. Ri muito. Ele insistiu que, quando tivesse interesse ou curiosidade, poderia procurá-lo. Ela disse que faria, mas não perguntou como. Ele, quando se tocou, deu-lhe seu cartão: “Ligue quando quiser. Compre para você e para seu namorado. Você tem namorado?” Ela tinha. Ele não bebia com elas porque estava viajando a trabalho, viagem longa demais. Ela ficaria sozinha por todo esse tempo de outono e inverno. Ele fez uma piada, não foi grosseira, mas conseguiu deixá-la sem jeito. Eu só conseguia rir. Ela desviou o rosto pro meu lado, estava corada. Fiz uma cara solidária, a melhor que pude. Ele parou um pouco de falar. Ela olhou bem o cartão entre as mãos. Mordeu parte do lábio, ficou uns segundos pensativa e me perguntou: “E você, não tem cartão?” Eu não tinha. Ela ficou sem graça. Olhou de novo, pensativa, o cartão dele, com o rosto ainda mais vermelho do que já estava antes. Disse à outra pra irem ao balcão pagar, já era tarde.

Pagaram e se despediram. El Jefe me disse que ela faria um belo par comigo, dois gordinhos. Talvez fizesse, não a conheci. Mas avisou: “Ainda bem que você não tinha cartão, eu ia ficar muito bravo com você.”

Eu nem ri. Respondi aquilo porque não tinha mesmo. Ele ficou bravo no dia seguinte quando ela lhe ligou perguntando por mim.

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