Anyway

Morrer acordado deve ser medonho! Quero morrer dormindo.
Aquela cena do mocinho se despedindo do amor de sua vida, a mão perdendo força, os olhos se fecham junto com o último suspiro, serenos, uma morte emocionante e digna. Isso não existe. A morte é sempre medonha. Quero que a minha me pegue inconsciente. De preferência dopado, gozando alegres sonhos de paraíso.

Sem homenagens. Quem não me homenageou em vida, não o faça na morte. Morto é surdo. Aqueles discursos sem sentido ao lado do caixão, da cova, do forno. Guardem para suas orações, se elas forem sinceras. Senão, nem apareçam. Por isso, o padre apenas faz uma oração em silêncio. Com o seu silêncio, respeita o meu.
O caixão sóbrio, modelo básico. Acho que essa é minha última frescura, post morten já. Sem flores, coroas, faixas. Sem bandeiras. Morro de medo de morrer no exterior e me cobrirem com a bandeira do Brasil. Que simbologia! Ferrado em verde-amarelo mesmo após a morte.
Se bem que a bandeira do clube eu aceitaria com muito gosto. Ele e os irmãos, foram as únicas coisas que me acompanharam a vida toda. Essa bandeira, por cima do caixão, como me abraçando, assim como o clube, mais que distração, me abraçou a vida toda, especialmente nos momentos difíceis.

A Boat to the MoonOs irmãos, é estranho, já enterramos um, há muito tempo, era o mais velho. Eu já conheço essa sensação. Agora sou eu. Eles logo vão superar, mas, quando um irmão se vai, um pedaço nosso vai junto. Percebemos que podemos viver plenamente sem esse pedaço, mas sempre lhe notamos a falta.

As crianças, já crescidas. O pai já não pode mais cuidar delas. Deixo-as com pena, mas as criei para isso. Não queria mesmo é que passassem por este transtorno que deve ser enterrar o pai, arrumar papelada, cartório, fisco. Brasileiro não se tem o direito de ser feliz. Nestas horas, percebemos, nem o de ser triste em paz, no seu canto.

A ex nem precisava estar aqui. Não veio por minha causa. Veio para se sentir bem consigo mesma. Fingir que se importou e fez o possível. Oportunidade teve.

A esposa, junto do caixão. Não falo dela por último por desfeita. É porque me acostumei a ela como se fosse parte de mim. E aqui ao meu lado, far away, so close. Não a quero chorando. De uma coisa me arrependo. Tentei muito, mas acho que nunca consegui que ela soubesse o quanto é importante pra mim e toda a felicidade que me trouxe. Triste mesmo, agora, é não poder mais tocá-la, não conseguir fazer-lhe carinho, um beijo apaixonado, falar algumas coisas em seu ouvido. Nem sinto o selinho que recebo. Ela não chora. A cara é de quem se lembra de coisas boas, com saudade. Não podia ser mais perfeita! Por ela eu temo. Temo não ter-lhe retribuído, te-lhe tomado tempo. Será que acertei? Que ela tem mesmo boas lembranças. Tantas quanto eu tenho? Espero que ainda seja muito feliz! Cada dia mais! Ela merece!

Os amigos, dois ou três estão presentes. Amigos mesmo, não tive muitos mais que esses. Os outros, também poucos, sabem que não faço questão que venham e se recordam de mim noutro lugar agora. Colegas não quero por aqui, não é circo, não sou atração.

O caixão fica ali aberto apenas o mínimo que a lei exige. Ao fechá-lo, cada um se lembra de alguma música que eu gosto. Ouvirei-as em memória por quanto durar a vida eterna.
Ser enterrado, queimado, reciclado ou usado em laboratório, não me faz diferença agora. Façam como quiserem ou, para me deixar mais feliz, como lhes cause menos transtorno.

Agora só quero descansar em paz, sozinho, com as boas lembranças.

Boat to the Moon

 

6 comentários em “Anyway”

    1. Morrer é sempre triste, mas já que tem que ser, gostaria que fosse do jeito menos doloroso possível. E, se não houve romance para deixar uma saudade feliz no final, pra quê que ela serviu?

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        1. No geral não achei triste, achei uma espécie de declaração de realização.
          Exceto a parte da esposa. Aí sim há uma tristeza estranha que se confunde com as lembranças e o medo do amor imenso não ter sido o suficiente para fazer justiça.

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        1. Deve ser bonito fechar a vida com esse sentimento e vendo um olhar de lembranças boas, com saudade, sem choro.
          Esse post não é sonho, é só imaginação, mas esse foi um momento de sonho lindo!

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